Fracção destinada a culto religioso

11/09/2019

O Tribunal da Relação de Évora (TRE) considerou recentemente que resulta do regime legal vigente que a alteração da destinação de uma fração autónoma depende do acordo do universo dos condóminos. Esta alteração implica a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, o que constitui uma importante limitação do direito de propriedade exclusiva que cada condómino exerce sobre a fração de que é titular.

O caso
Uma entidade financeira e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) instauraram contra os condóminos de um prédio, todos representados pelo administrador do condomínio do imóvel, pedindo a declaração da ineficácia/nulidade da deliberação aprovada em Assembleia de Condóminos. De acordo com esta deliberação, a maioria dos condóminos pretendem diligenciar junto das autoridades competentes pelo fim das práticas ilegais da IURD na fração em causa.
O referido culto invocou que foi celebrado um contrato promessa de sublocação relativo à fração em causa, e que esta está afeta desde então ao culto religioso e a obras de acção social. Esta utilização foi expressamente autorizada pela maioria dos condóminos, mediante declarações por cada um deles subscrita e não revogada, o que a IURD a efetuar obras de adaptação na fração, tendo ainda apresentado requerimento na Câmara Municipal em ordem a obter autorização para alteração do seu uso e celebrado subsequente contrato promessa de compra e venda do imóvel.
De acordo com a IURD, a deliberação em causa, sendo atentatória dos direitos das demandantes, é ilegal por extravasar das competências deliberativas da assembleia de condóminos, que não pode deliberar sobre o uso que a cada uma das frações é dado pelo respetivo proprietário, sendo assim ineficaz em relação às demandantes, padecendo ainda de nulidade, o que deve ser declarado.
Se assim não se entender, continua a ser ilegal, por contrariar a Constituição da República Portuguesa, a Lei da Liberdade Religiosa e instrumentos internacionais a que Portugal se vinculou.
O tribunal de primeira instância deu razão à IURD, declarando ineficaz a deliberação da assembleia de condóminos referida.
Os condóminos recorreram da decisão para o TRE.

Decisão do Tribunal da Relação de Évora
O TRE confirmou a decisão de primeira instância, embora com fundamentos diferentes.
Embora a fração em causa tenha sido usada anteriormente como armazém, o título constitutivo de propriedade horizontal do prédio do condomínio refere que a fração em causa destina-se ao comércio ou indústria.
Assim, não é caso de declarar a nulidade do título constitutivo nesta parte, assentando-se em que a fração em causa se destina a comércio ou indústria.
Por outro lado, a alteração do título constitutivo de propriedade horizontal, designadamente por força da modificação do fim a que a fração se encontra destinada, carece do acordo de todos os condóminos, implicando ainda a celebração de escritura pública ou documento particular autenticado, instrumentos nos quais o condomínio se pode fazer representar pelo respetivo administrador, desde que o acordo conste de ata assinada pela universalidade dos condóminos.
Trata-se de uma importante limitação do direito de propriedade exclusiva que cada condómino exerce sobre a fração de que é titular, reconhecendo-se que o direito de propriedade não é absoluto.
O direito do proprietário - de usar e fruir a coisa que lhe pertence - deve ser exercido «dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas. Por assim ser, estando em causa restrições impostas em benefício do conjunto dos condóminos, e ao contrário do entendimento constante na sentença de 1.ª instância, o TRE considera que a violação das interdições legais e a tomada de medidas tendentes à reposição da legalidade se inscreve nas competências deliberativas da assembleia, contendo-se ainda nas funções do administrador, a quem compete, para além do mais, assegurar a execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio.
Por outro lado, as limitações atinentes ao uso da fração para fim diverso são ainda impostas por razões de ordem pública, uma vez que o licenciamento é feito tendo em atenção as características técnicas do edifício, não sendo indiferente a afetação que venha a ser dada a cada uma das frações. É por isso que a alteração da utilização de edifícios ou suas frações está ainda sujeita a autorização ou licença camarária, aqui se atendendo a critérios urbanísticos (verificada que esteja a legitimidade do requerente, designadamente por ter sido autorizada a pretendida alteração).
No entanto, a Lei da Liberdade Religiosa introduz nesta temática um regime especial, que deverá prevalecer, conforme vem sendo comummente entendido, sobre o regime geral referido.
Esta lei estabelece que as igrejas e demais comunidades religiosas são livres no exercício das suas funções e do culto, podendo, nomeadamente, sem interferência do Estado ou de terceiros, estabelecer lugares de culto ou de reunião para fins religiosos.
Estabelece ainda essa lei que, havendo acordo do proprietário, ou da maioria dos condóminos no caso de edifício em propriedade horizontal, a utilização para fins religiosos do prédio ou da fração destinados a outros fins não pode ser fundamento de objeção nem da aplicação de sanções pelas autoridades administrativas ou autárquicas, enquanto não existir uma alternativa adequada à realização dos mesmos fins.
Assim, de forma a assegurar a liberdade religiosa, que goza de tutela constitucional, a lei isentou as igrejas e demais comunidades religiosas do cumprimento de requisitos de cariz administrativo: a lei de liberdade religiosa não contém qualquer norma a prever o prévio licenciamento ou autorização para o exercício de culto, nem sequer a «declaração prévia» atualmente exigida para alguns estabelecimentos de prestação de serviços. Assim, mesmo em prédio ou fração licenciada para habitação ou comércio pode ser instalado um lugar de culto, bastando para o efeito o acordo do proprietário ou da maioria dos condóminos, não sendo exigida qualquer autorização administrativa.
Ora, no caso vertente, ainda que em momento posterior ao do início da religiosa desenvolvida pela IURD no locado, foram recolhidas declarações de condóminos que representavam 661,95% do valor total do prédio, constituindo, portanto, a maioria, no sentido de autorizarem tal prática.
Ou seja, a IURD podia legitimamente exercer o culto no locado, apesar de se tratar de fração destinada a comércio ou indústria.
Relativamente à revogação das referidas autorizações dependeria da emissão de uma declaração de vontade de sentido contrário por parte dos declarantes que constituíssem também uma maioria em relação ao total do valor do prédio (e não da maioria dos presentes na assembleia, inferior àquela), que não foi obtida.
Assim, a assembleia não podia validamente deliberar a proibição de tal uso, sendo a deliberação impugnada pelo menos anulável, por ser violadora do direito de propriedade da locadora.
Finalmente quanto à exigência de retirada do reclame da IURD da fachada do prédio, sob pena de se considerar que a afixação de qualquer placa, independentemente das suas características e do local mais ou menos destacado onde se encontra, importa sempre afetação do aspeto do edifício com a relevância pressuposta pela lei, a ausência de factos não permite concluir que estamos em presença de obra que exigisse a autorização de 2/3 dos condóminos. Não se provando que era necessária a autorização, a falta dela não pode constituir fundamento para se determinar a remoção da placa, sendo a deliberação tomada, também neste segmento, anulável.

Referências
www.lexpoint.pt
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27.06.2019, proferido no Processo n.º 2389/14.5TBPTM.E1
Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho
Constituição da República Portuguesa, artigo 41.º